Um Macaco Fonia

Quem Delatou Ângelo Ponezo?


Manhã cinzenta de Março de 1971. Nos úmidos porões da carceragem da Polinter, em meio a uma multidão de corpos de exilados políticos (dentre eles, alguns ex-combatentes imperialistas do cerco na Baía dos Porcos) bem como de mais de uma dezena de criminosos comuns, um grupo de legistas prepara-se para realizar o que será talvez sua última necropsia:

            “Azeitonas”, comenta um deles, em tom confidencial.

            “Não é possível, tem certeza?”

            “Tenho. Tenho certeza.”

            “Mas, e na massa, manteiga?”

            “Margarina. Uma xícara de chá, apenas.”

            Não muito longe dali, Fabíola, pequena garota criada na casa de seus avós, pirulito na boca, desmonta de sua bicicleta no pátio em frente à sua casa. Sua mãe, que acaba de chegar em casa vinda da vendinha (situada próximo à antiga Rodoviária), a chama para o café da manhã.

            Fabíola reclama:

            “Ah, manhê!... Não tô com fome!”

            Sua mãe, impaciente avisa, irritada:

            “Não vou chamar duas vezes!”

            Cachorros de todas as raças copulam pela vizinhança.

            No pequeno museu da cidade, onde naquela semana trechos escritos à mão de músicas do cancioneiro popular são exibidos, mendigos pedem esmolas. Um deles, um mestiço conhecido apenas como “José”, ressona, enquanto seus companheiros, nervosos, empilham seus cacos na partida para nova jornada. “Maria”, companheira de José é, ao que parece, a mais irritada do grupo.

            Ao Norte, na densa espuma de barbear do advogado Pessoa, o aparelho desliza suavemente. Enquanto isso, pouco mais ao Norte da sua própria pessoa, Pessoa organiza mentalmente sua estratégia para o julgamento da manhã.

            “Ai!”

            Pequenas gotas de sangue escorrem, misturadas ao creme de barbear. Pessoa se desconcentra:

            “Merda! Mariaaa, me veja um novo rolo de papel higiênico, rápido!”

            Crianças choram. Pais, também, apenas que escondidos. Principalmente quando, após uma espera de um ano inteiro, recebem de seus filhos meias de presente - compradas no supermercado.

            De volta aos porões da carceragem, Paulo, que iniciou sua carreira como obstetra na distante localidade de Pinambá, duvida:

            “Margarina, tem certeza?”

            “Tenho”. O auxiliar da necropsia deixa escapar o bisturi das suas mãos, ainda pouco rígidas pela manhã fria. Não tão fria nem tão rígida, porém, quanto os corpos a sua volta. “Mas se você quiser, podemos ligar para a Tereza.”

            “Não, obrigado. Não precisa tanto”, Paulo responde, disfarçando o nervosismo da alusão à esposa do colega de trabalho.

            Sua memória do empadão que comia enquanto ainda casado com Janete era de uma massa fina, quase não-crocante, uma massa que derretia como o foie gras do fígado do cadáver obeso à sua frente. Não podia mais perguntar sobre os ingredientes à Janete, há anos que não se viam. Circulam boatos de que ela trabalhava agora como garçonete, para ajudar no sustento da sua filha adolescente. Engraçado. Janete, garçonete. Osório, auxiliar de escritório. As rimas bobas que esta vida inventa...

             No 18, Geralda, a empregada, percebe, indignada, pequenas manchas que seguem a mesma padronagem da cortina rendada do quarto de bagunça. “Mosca”, pensa, enquanto da cozinha, vapores de odor almiscarado (Geralda é manca das duas pernas) do almoço sendo preparado, invadem o apartamento.

            “Não estamos diante de bandidos sem experiência”, comenta o subsecretário.

            “Pra mim, pode ser o de sempre.”

            “A bandidagem têm criado novos métodos.”

            “Aberto, no prato.”

            “E a polícia, como sempre, correndo atrás.”

            “Só que no lugar do presunto, me ponha aquele salaminho, especial, tipo italiano...”

            “Cê tá prestando atenção?”

            “Tôô. Ah! Matilde, não esquece, tudo carregado na mostarda, oquêi?”

            Na cozinha da lanchonete, cebolas foram escolhidas a dedo, tomates foram escolhidos a dedo, pimentões e abobrinhas foram escolhidos a dedo. Cozinheiras foram escolhidas mesmo pelo velho método da entrevista.

            Na espessa neblina do banheiro, entre odores de amônia e pinho, Fátima Regina, filha da garçonete, hoje uma adolescente de ancas generosas, treina seus beijos na superfície dura de uma goiaba, enquanto prepara-se para suas provas. Seu professor, entretanto, tem um nariz que mais parece com a metade de uma berinjela.

            “José”, o mendigo, ainda dorme como um sapo no asfalto, esturricado, em frente ao museu, em pleno sol do meio-dia. Seus colegas de mendicância começam a duvidar de que “José” ainda esteja vivo. Sua esposa “Maria” (apenas, e com aspas) é a única que não se preocupa. Há anos divide o leito com o vagabundo.

            Uma velha senhora

            Refém das memórias de bons e maus momentos

            A tudo observa

            Por trás da cortina de seu velho apartamento.

            O que atrapalha sua visão, no entanto, são suas pesadas pálpebras.

            Fátima Regina não resiste e come, ali mesmo em meio à névoa, a goiaba encaroçada de suas paixões pueris.

            Na lanchonete, a espera é longa. Sérgio e o subsecretário, verdes, olham com olhares ambiciosos os restos da rabada do PF deixados na mesa em frente pela senhora de panturrilhas varicosas. Poderia se estudar os afluentes do rio Amazonas ali. Acorrentados, escravos agachados ao lado do engenho não se movem, na gravura de Debret pregada na parede, fingindo que os fatos relatados nada tem a ver com eles.

            Crianças ainda choram. Parece que chorarão pra sempre. Menos Fabíola, a mocinha do pirulito.

            Ao perceber os rasgos na rica padronagem de cocô de mosquinha na cortina, a patroa do 18 despede Geralda no ato.

            Centenas de milhares de micróbios resistentes à quase tudo quanto se lhes ofereça – exceto à esplêndida música de Beethoven que, curiosamente, sensibiliza igualmente vacas leiteiras de estábulos do mundo inteiro há anos – preparam-se para sua refeição principal: maionese de camarão. De sobremesa, coalhada, onde terão a companhia de seus amigos azedos, os lactobacilos.        

            “Presente!”

            Fátima Regina nota, envergonhada, que seu professor de História repara na mancha de goiaba amassada nas suas meias de algodão, puxadas até o joelho.

            Concentradas na praça principal, onde um grupo de turistas etruscos pede, implora por informações, mães preparam-se para invadir as avenidas da cidade, em protesto: há exatos vinte e cinco anos – desde antes do incêndio que dizimou o coreto - que não presenciam um eclipse, lunar ou solar, não importa.

            Em meio à pequena multidão uma criada metade negra (vitiligo), esfregando as mãos no avental da cozinha mais por hábito que por necessidade, puxa Tereza, a líder do movimento, para o canto da praça, onde possa ser ouvida. Com angústia visível no olhar, Tereza desculpa-se com as amigas mais íntimas e atravessa a praça correndo sem reparar no enorme coágulo no rosto do homem de terno (um advogado, talvez) que cruza seu caminho em direção à casa de tijolinho à vista.

            Tereza atende cautelosa o telefone ainda molhado pelas mãos da meio-negra, sem perceber que a pequena Fabíola a escuta por trás do sofá:

            “Paulo?”

            Uma noite instantânea, como a sombra projetada do urubu no vôo, avança lentamente sobre o centro da pracinha.

            E a pergunta permanece sem resposta.

       


 
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