Um Macaco Fonia

Me Dê Motivos

Querida (se me permite a intimidade) Kika:
Quando listei os vinte e três motivos pelos quais eu a amava, você deve estar lembrada, era exatamente pelo fato de você, na época contar com vinte e três – como se dizia – “primaveras”.
E você, como era o costume, então me disse: “Legal, vou também fazer o mesmo!”.
Prevendo dificuldades, tentei dissuadi-la. Até porque, numa rápida vistoriada, não consegui achar em mim mais do que três ou quatro qualidades.
Você, no entanto, foi em frente. Naquele mesmo dia, lembra? Pegou papel e caneta e começou:
-Olhos.
-Que é que tem os olhos? – perguntei.
-São lindos!
Olhos tristes, escondidos sob sobrancelhas arqueadas, olhos dum sujeito meio depressivo. Mas você os achava lindos, não discuti. Deixei.
A partir dali, a dificuldade começou. Meia hora você de bruços sobre a cama, linda, caneta na boca, pezinhos pra cima. Num silêncio entrecortado por vários “Não, não” ditos em voz baixa. Eu angustiado, fazendo de conta que não era comigo.
Pensei em sugestões. “Olha, a batata da perna até que não é má!”.
Fiquei calado. Disfarcei com a necessidade de preparar um café e deixei-a matutando. Quando voltei, você me disse: “Calma, calma, vou fazer. Me dá só um tempo”.
Não sei porque, Kika, você não esqueceu. Treze anos se passaram.
Casamos. Cada qual com os seus, claro. Eu, inclusive, há quatro anos separado. Não sei, talvez nunca tenha me esquecido dos meus vinte e três motivos. Ou das suas vinte e três qualidades (já nem sei o que era uma coisa ou outra).
Hoje, ao abrir meu e-mail, leio surpreso: Vinte e sete motivos. Remetente: Kika!
Achei impossível. Vinte e sete, Kika, estou com quarenta, e só agora você consegue terminar a lista! Levei cinco minutos pra fazer a minha!
Ainda fosse só por isso, mas...
Cabelos loiros. Hoje? Naquela época, não? Mas, e agora, que cabelos? Loiros, muito menos. Meus únicos fiapinhos, sustentados pela orelha, estão duma cor amarelo-meio- acinzentada.
E que história é essa, Kika, de “habilidade com a raquete”? Eu nunca joguei tênis – ou pingue-pongue – na minha vida! Inventou? Ou confundiu com outro? Ou quem sabe essa raquete está em sentido figurado?
Não quero dar uma de exigente, afinal essa lista foi iniciativa sua. Mas se você se propôs a ela, podia dar ao menos uma pesquisada. Ou perguntar pra Maria Tereza, minha atual namorada.
Não, melhor não. Maria Tereza é uma mulher objetiva e não parece lá muito interessada. Além disso, é meio feia. E mal-humorada, na maior parte do tempo. Às vezes me pergunto por que estou com ela. Bem, devo ter os meus motivos.
É isso, Kika! Vou fazer a lista: trinta e quatro – Maria Tereza tem trinta e quatro - motivos pelos quais agüento minha nova namorada. Obrigado pela idéia.
E ó: dezenove centímetros? Só se há treze anos!


 
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