Agradecimento
Anos atrás, obtive do meu médico um diagnóstico assustador: um quase-infarto. Por sorte era apenas quase. Estava apenas farto. Farto da nossa longa convivência. E, ignorante da nossa interdependência, confesso que tentei pôr um fim na pobre criatura.
Armei-me com um belo travesseiro, obstinadamente exercitei meu frágil corpo nas gélidas manhãs por dias a fio, comprei litros de refrigerante sem cafeína, e, esperançoso, adotei meticulosas e entediantes rotinas. Até pequenas doses de benzodiazepínico eu dei pra coitadinha.
E assim foi que ela não resistiu. Sumiu da minha vida sem deixar rastro e aparentemente para sempre.
Porém, para minha incredulidade, não sei se indignada com tal violência contra ela, fui percebendo aos poucos que ela havia me roubado. Procurei em desespero nos mais empoeirados recônditos da minha cinzenta substância, revirei gavetas da cômoda memória e nada. A diabinha levou consigo todo e qualquer vestígio da minha pretensa criatividade.
Já no bilhetinho de adeus que a imaginação a ela imputava, pude perceber no que minha vida se transformaria. Dizia de forma irremediavelmente lacônica:
"Amor meu
Onde outrora eu abundava
Hoje há a bunda do Morfeu. Fui."
Não tinha jeito. Sentindo-me saudável como havia muito não me sentia, com uma incômoda sensação de normalidade e um vazio inconsciente relutante, abandonei meus novos hábitos e, com o arrependimento estampado, corri pedir penico para a bandida.
Reencontrei-a, como não poderia deixar de ser, na madrugada, talvez buscando novas e incautas vítimas. Como eu suspeitava, tornou a me aceitar de braços abertos.
Novamente insinuante, deita-se agora na minha cama todas as noites, sem me pedir licença. Insaciável, me faz acompanhá-la em manobras acrobáticas sobre o colchão. Insatisfeita, reclama da falta de espaço. Ingrata, nem liga quando me retiro para a sala. Injuriado, suspeito que um dia desses a abusada vá me pedir que lhe traga um copinho d’água.