Um Macaco Fonia

Relações Familiares

Um náufrago no seu próprio habitat. Foi assim que Geodásio se sentiu quando a sua Telefunken, uma televisão 20 polegadas “de colores” deu os últimos sinais de vida durante o jantar. Nem bem havia acabado a musiquinha da novela “Um pecado de amor” e... “fuiiim!”. Lá estava a sua velha companheira de todas as horas, aquela que tantas emoções havia lhe proporcionado, como num leito de UTI a exibir apenas uma fina linha do Equador cintilante separando dois hemisférios de coisa nenhuma. Ainda tentou todos os métodos ortodoxos amplamente conhecidos como ajustar a palha de aço da antena, girar no sentido anti-horário o seletor de canais e por fim, o mais científico artifício: o da porrada. Mas não, era preciso admitir. Não havia mais salvação.
Subitamente Geodásio deu-se conta do ambiente que o cercava. Não fora pelo insuportável ruído da ruminação e gorgolejo das pessoas presentes, um silêncio sepulcral teria definitivamente ali se instalado.
Mas quem eram mesmo estas pessoas? Exceto pela bela presença de sua esposa naquela mesa, pairava uma desconfortável incerteza sobre os demais. Espera um pouco. Quem disse bela esposa? Tudo bem que quando se casaram há cerca de trinta anos a Déia (qual era mesmo o seu nome de batismo? Era difícil decifrar após tanto tempo dirigindo-se a ela desta forma, e depois, provavelmente qualquer pessoa que responda por Déia certamente não deve ter um nome que mereça ser lembrado) não era de se jogar fora. Exceto por um discreto buço a ressaltar a quase ausência de queixo, o que causava algumas vezes a impressão de que Deus esquecera de fazer a boca, ela possuía um corpinho bem interessante distribuído nos seus um metro e quarenta e quatro centímetros. Mas como era possível que ela tivesse se conservado tão bem nestes anos todos?
Não levou muito tempo para desvendar o enigma. A não ser que aquela senhora de meia-idade sentada ao seu lado fosse sua sogra, o que dificilmente Geo (seu nome também não era grande coisa) teria aceitado como companhia na sala de jantar, esta suposta esposa era na verdade uma de suas duas filhas. Como estavam parecidas! Mas e o rapaz ao lado dela? Seria seu filho também? Por mais que se esforçasse não conseguia se lembrar de terem tido um filho do sexo masculino... Lógico. Devia ser o seu genro. Seria apropriado perguntar?
Foi em meio a este dilema que ele finalmente concordou com as queixas de sua mulher. Provavelmente ele estava mesmo muito dependente daquele aparelho de televisão. Mas que culpa tinha ele? Os programas todos são tão interessantes! Não fosse por algumas propagandas chatas e pela presença ocasional do programa eleitoral gratuito ele realmente talvez nunca tivesse se ausentado da frente daquele aparelho. Concedida a crítica, restava pensar sobre o que faria com o resto de sua vida. Compraria um novo televisor ou tentaria reatar os laços familiares com aqueles estranhos a compartilhar a sua mesa? Por que questionamentos desta natureza invadiram-no duma hora para outra?
Pensando bem, essa tragédia deve ter vindo como um aviso para Geodásio. Não era mesmo possível este estado de coisas. Uma vida inteira na convivência dos seus familiares, e ele mal sabia quem eles eram.
Não.
Ele haveria de mudar.
Afinal, há mais de uma década ele vinha tentando identificar esse gosto na sua sopa. Já era hora de contar para a Déia que ele detestava batata-salsa.


 
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