Um Macaco Fonia

O Velho, O Novo... (Parte 2)

Bato na sineta. Nisto sou melhor que ele, Clint. Berta, a velha Berta, expressão fechada, vem me atender. Abre-se num sorriso ao ver de quem se trata. As mãos trêmulas quase a impede de preencher a ficha. O velho Párquisom. Penso, não sem um tanto de maldade, o quanto a doença tem lhe sido útil na sua viuvez.
-Olha quem está aqui! – diz a uma das prostitutas que folheia uma Caras no sofá de couro roto do hall.
A prostituta sorri e volta a cruzar as grossas pernas, lambendo os dedos na virada das páginas.
Peço o quarto dos fundos: não quero dividir sacada com as mulheres. Tudo o que preciso é dum bom banho e de uma cama, mas agora me ocorre inverter a ordem. O banho pode novamente esperar. Sigo os passos que me levam ao quarto no segundo andar. Estranho, são meus mesmos, não há mais ninguém comigo. A cama urge. Estarei mesmo no hotel? Apalpo a foto do centro da cidade no início do século. É real, meu tato normalmente é o último sentido que me abandona. Penso novamente em largar o ofício, o peso dos anos já se faz sentir. O maquinário é cada vez mais leve, mas torna-se ainda assim difícil para meus tríceps atrofiados, minhas mãos cada vez mais trêmulas, como as mãos de Berta.
Entro no quarto, desanimado. Tento me manter focado apenas no objetivo da minha árdua missão. Desvisto o pesado sobretudo em cima da pequena mesa, não sem antes conferir, me agachando, a limpeza do móvel. Quantas bundas transaram naquele tampo durante este tempo todo? Jogo-me na cama e logo adormeço, em meio aos cantos irritantes da cigarra. As formiguinhas tinham razão em deixar este bicho nojento morrer de frio e de fome, uaah...

-É ele?
Cegado por grossas remelas - devia ter tomado o banho antes - custo a entender o que se passa a minha volta. O prefeito Toninho Joaçaba e seu escudeiro, o advogado de pequenas calças conhecido pela alcunha de “Roberto” aguardam, pacientes, para que eu me levante. Berta, a viúva trêmula, certamente me denunciara. Ou então a moça do guichê. Ou a enguia elétrica. Com certeza não fora o sapatudo. Mijou-se nas calças, não teria tido a coragem. Corro minha mão direita coberta de remelas para baixo da cama, tateando em busca da valise.
-Era isto o que você estava procurando? – pergunta o advogado, acentuando o circunflexo do “e”, como nos filmes, após o que solta uma sonora gargalhada, charuto entre dentes.
-Não. Procurava a virgindade perdida de sua irmã.
Não sei por que disse aquilo. Nem sabia se o cara tinha irmã.
Tinha. Levanta-me da cama pelos cabelos do peito (estou nu e são muitos) só para me desferir seu golpe: um cruzado no queixo que me faz ouvir “Cidade Maravilhosa” em concerto para xilofone.
Quando acordo novamente, remelas de ambos os lados chegam à base do nariz. É noite. Limpo os olhos. É dia.
Tento raciocinar. Não é fácil, não estou acostumado. Redobro o esforço.
De repente, as coisas começam a fazer sentido. Minha incrível semelhança física com o extorsionário Cocada. As gravações em vídeo dos encontros furtivos de Toninho Joaçaba com suas cabos eleitorais antes das últimas eleições, que quase custaram seu mandato. Minha presença na cidade. A nota de cem. O molho de alcaparras do Rei do Pescado. Não, isto não tinha nada a ver. Minha valise carregada de livros didáticos destinados à biblioteca do município, para as crianças pobres. A rispidez no trato com o motorista. E, principalmente, meus gestos imitando Clint Eastwood. Claro, tudo se encaixava.
Exceto minha mandíbula ao pronunciar as fricativas e as interdentais.
O sobretudo! Corri apalpar os bolsos do meu sobretudo.
Ali estava: meu título de eleitor. Ainda poderia evitar o pior. Nas próximas eleições, voltaria à cidade, certamente para votar no candidato de oposição.


 
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