Nu e Cru
-É isso.
-Eu tô...
-Tá. Você não lembra?
-Só me lembro que eu tava no meu carro parado na esquina e...
-Pois é. Foi assim mesmo.
-Então é assim... Mas, afinal, aqui é céu ou purgatório? Inferno, já saquei que não é... Pode falar “saquei”?
-Por que? Tem alguma placa que diz que aqui não se pode falar de alguma coisa? Mas vamos começar a deixar as coisas claras por aqui: esqueça esse negócio de céu, purgatório, inferno. Vocês sempre vêm com essa mesma conversa. Tudo bem, eu é que devia já ter me acostumado. Mas vocês não têm idéia do que é ter que repetir a mesma história todos os dias. Qual era sua profissão?
-Guia turístico.
-Ah, então desculpe. Você sabe. Mas como eu estava dizendo, essa divisão foi criada por vocês mesmos, apenas para fins didáticos. O problema é que, como nós não interferimos, foi virando verdade. Sabe como é... Velho Testamento, aquele rapaz, o Dante, todo mundo confirmando essa balela. Aceita um cafezinho?
-Cafezinho? Quer dizer que a gente ainda sente necessidade de tomar cafezinho, comida, essas coisas?
-Na verdade, não. Essa do cafezinho era só para dar ares de uma certa etiqueta. Não se ofenda. Não foi com a intenção de zombar. É que certos hábitos são difíceis de largar. Esse do cafezinho é um deles. Depois do almoço, então, junto com um cigarrinho, é quase impossível. Por isso a gente oferece. Ter não tem, mas a gente oferece. Assim o pessoal vai se desabituando aos poucos.
-Desculpe...
-Sim.
-Não, é que você... Posso chamar de você?
-Do que é que você me chamava antes?
-Lá embaixo?
-Não. Vamos chamar de “antes”. Esqueceu que você não está “lá em cima” nem “lá embaixo”?
-É mesmo!
-Tudo bem, é o que eu estava falando em relação aos hábitos. Mas vamos lá. Como é que você me chamava?
-Desculpe de novo, mas primeiro eu preciso saber... Você, ou o Senhor, é o...
-No escalão? Tá vendo o que eu te falo? Lá vem você com aqueles conceitos bobinhos. Desde que chegou aqui deve estar se perguntando: será que é São Pedro? Mas vestido desse jeito? Ou será que é o Próprio, o Todo- Poderoso? Agora eu pergunto: que diferença vai fazer para você? É pro tratamento? Vou te responder: aqui todo mundo só deve me chamar de honorabilíssimo chefe executivo celeste magnânimo. Repita, por favor.
-Honora...
-Chega! É brincadeira, lógico. Me chama de você. Se é que você vai precisar me chamar pra alguma coisa. Agora se você puder me dar licença...
-Por favor, só mais uma coisa. Uma não, duas. Eu não posso deixar de perguntar.
-Diga.
-Você perguntou minha profissão. Não é que eu queira dar uma de desconfiado logo aqui, Deus me livre. Quer dizer, você me livre. Mas... Não era para você já saber, já que você tudo sabe?
-É vero. Desculpa, é que às vezes eu confundo os idiomas de vocês. É verdade. Tudo sei. Ou deveria tudo saber. Só que na maioria das vezes eu confundo um pouco. Problema é que nós criamos vocês todos muito parecidos: todos à imagem e semelhança da gente. Mas pra te falar a verdade, pouco me importa o que vocês faziam lá embaixo.
-Como assim? Na profissão?
-Não, em tudo! Ai, meu Eu! Vou ter que te explicar de novo? Essas histórias de pecado, moral, etc. Tudo coisa da cabeça de vocês! Talvez você não consiga entender. Você já vivia na era de televisão, telefone, Internet. Já ocupava bastante bem a tua cabecinha. Agora tente imaginar na era pré-medieval. Essa gente não tinha mais o que fazer a não ser inventar história!
-Desculpa mais uma vez. “Estória”, você quis dizer.
-Não, história, mesmo. Ou você acha que tudo o que você lia nos livros de história acontecia de verdade? O lance é o seguinte: vocês criaram as normas. Desde então fazem um esforço danado para segui-las. Têm conseguido cada vez menos, é verdade. Mas tudo bem. Com isso mantém um grau aceitável de estabilidade cósmica. Já quando a turma chega aqui, descobre que todo o sacrifício foi em vão. Aí é tarde: Inês é (literalmente) morta.
-Ai, que dor de cabeça! E eu que pensava que ia ficar livre disso aqui! Então só mais uma pergunta: é verdade mesmo? Essa é eterna?
-Essa o que?
-Essa vida, uai.
-Que mané vida é essa que tu tá falando? Pois tu já não acabou de realizar que tu tá morto?
-Mas...
-Agora dá uma licencinha que eu tenho mais o que fazer. Vida eterna... Essa é boa! Daqui a pouco vai me perguntar aonde é que estão as nuvenzinhas! Com o preço do gelo seco pela hora da morte! Próximooo!!