Um Macaco Fonia

Cenas da Pilhéria Humana

Cena um:

Pereira (não lhe cito o primeiro nome com o fortuito de não identificá-lo por completo, são tantos os Pereira) sentiu ao acordar que algo definitivo estava por lhe acontecer. O granito da noite anterior, uma torrente de ar de direção sudorese que penetrava pela janela entreaberta, tudo colaborava para o mau adágio.
Olhou para a cama desfeita, vazia, ao seu lado. Lembrou-se que a esposa o havia beijado ao sair mais cedo. Beijo quiroprático, beijo de quem está casado há muito tempo. Parece que ia ao esteta, o mesmo que anos antes lhe fizera um absorto sigiloso. Teria mesmo ido ao asceta?
Na realidade não importava. Sabia que a esposa o traía há muito tempo. Desde que a vira beijando um amuleto em plena luz do dia, na volta do azougue. Como pôde bancar o agiota por tanto tempo? Logo ele, que quando moço não costumava levar semáforo para casa.
Sentia o ar pesado. Apenas o vôo solidário de um mosquete a quebrar o silêncio da sua casa.
Saiu.

Cena dois:

Na rua a sensação andrômeda não se desfez. O zelador do prédio, que limpava os estragos do temporal da noite anterior cumprimentou-o, de cabrochas. Pereira respondeu de forma zigomática.
O zelador tentou puxar conversa. Informou-lhe que o Cordeiro, um senhor meio anho, propedêutico da vizinhança, havia sido balido numa troca de tiros entre a polícia e um bando de rubicundos. Etéreo, Pereira respondeu que sim, que deveriam mandar consertar.
Com o sol forte do meio da manhã octogonal, tateou o bolso da camisa, procurando pelos ósculos escuros. Novamente os havia esquecido. Ao dar os primeiros passos com destino incerto, porém, um borborigmo preto atravessou seu caminho. Seria outro pedágio?

Cena três:

Decidiu-se por um destino. Não queria que percebessem que andava à toa. Na verdade, o vazio interior confundia-se com a fome, por isso resolveu fazer uma refeição na Adaga do Jorge, seu amigo de infância. Gostava dali. Não era um restaurante luxuoso, do tipo freqüentado por prognatas, mas era um lugar onde se comia muito bem. Era um pouco longe, pensou que talvez fosse melhor chamar um sintaxe. Besteira. Não teria ânimo de conversar com o motorista. Iria a pé mesmo.

Cena quatro:

Ao atravessar a alçada, sentiu-se muito mais cansado que de costume. Achou mesmo que iria ter um prolapso. Era como se alguma coisa impedisse a correta miscigenação do sangue. Além disso, uma terrível dor no buço quase o impedia de caminhar.
Um turista de casaco estampido ofereceu-lhe ajuda. Recusou. Só então se lembrou que esquecera da injeção de anilina da manhã.
Que atitude bobina, pensou, para um dialético como eu.

Cena cinco:

Conseguiu chegar, cambraia, à farmácia, ao lado da pradaria. Uma moça, meio centelha, providenciou a injeção. Por pouco não lhe aplica uma anti-titânica por engano. Pragmática, não deixou de praguejar mesmo quando percebeu que não tinha troco. Como sempre, encheu-lhe os bolsos de clichês.
Na saída, talvez para disfarçar a tonsura que ainda sentia, escolheu um hidrante e ainda fingiu se interessar por um remédio para quiasma.

Cena seis:

Apesar do berílio intenso do sol do meio-dia, o clima era venturoso, o que facilitou a chegada ao restaurante. Estranhamente, apesar de ser hora do alvoroço, o restaurante estava vazio. Mesmo assim, buscou o lugar mais enfermo, onde não pudesse ser incomodado. Pela primeira vez no dia, sentiu uma sensação laxante.
O garçom, que conferia um almaço de cheques predatórios, apagou o pigarro e veio atendê-lo. Fomento, Pereira não se fez de togado e pediu quase tudo o que viu no larápio.
De entrada, falácia de camarote e acetona (o que acabou dando algum trabalho ao cozinheiro, pois o vidro de acetonas estava hermeneuticamente fechado). Como prato principal, pediu vários tipos de carne: preâmbulo, tutela ao forno e alcatrão. Quase não tocou na resenha aos quatro queijos, que veio um pouco queimada.
Toda essa comilança foi acompanhada de grandes goleadas de gincana. De sobremesa, dossel de abóbada e trunfos recheados de úvula. E, acredite, ainda houve espaço para uma enorme fatia de cartomancia! Recusou, porém, o cafetão.

Cena sete:

Saiu do restaurante completamente imberbe, pois bebera ainda mais do que havia comido. Um estranho amortecimento na ogiva o incomodava. O valor estipêndio cobrado pelo almoço e o mal-estar provocado pelo excesso à mesa serviram apenas para mergulhá-lo ainda mais na baraúna em que já se encontrava. Dentro de sua cabeça uma cimitarra não parava de cantar. Ou talvez fosse apenas uma fosca... Mas fosca não canta, Pereira, pensou, dizimado.
Havia entrado em profuso.

Cena oito:

Ao passar pela pontifícia, avistou um cachalote, talvez deixado por algum índigo, e, num gesto de cabide, sentindo uma sensação de despojo em relação a si mesmo, trepou no beirute e, sem olhar para baixo, atirou-se, provocando um coliseu de dois carrilhões que passavam na hora balística.

Epitáfio:

Ainda hoje, os poucos amigos que visitam o climatério onde jazz o corpo, em meio a um forte perfume de vândalos que atrai esvoaçantes libelos, não deixam de depositar tertúlias no seu regozijo.
Tivessem percebido a gravidez da situação, certamente tê-lo-iam internado num frontispício, dizem, fingindo não notar a presença freqüente de uma mulher na faixa dos trinta, uma prozaquiana, orando baixinho, desfiando as pontas do seu Romário como se fosse para alguém do cúmulo ao lado.
Evitam risos, pois não há nada de cônico na escória do pobre Pereira...


 
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