Um Macaco Fonia

Desilusão Precoce

A vida para o Luquinha já não vem mais tendo muita graça ultimamente. Tem sentido todo o peso dos seus cinco anos nas costas. Seus antes coloridos brinquedos começaram a ficar em tons acinzentados. O motivo? Fátima Daniela, Fafá para os íntimos, aquele aviãozinho do 404. Ele nunca soube explicar muito bem o que vira naquela menina. Mas desde o começo tinha tido absoluta certeza: era mesmo para sempre. Nem bem acordava e já começava a pensar naquela boquinha semi-desdentada, com gengivas tão vermelhinhas, naquele olhar aparentemente tão inocente, mas tão malandrinho, na maneira delicada de segurar a chupeta, quase despencando da boca. Se bem que ele preferisse as chupetas dos modelos mais antigos, daquelas redondinhas por fora, não esses novos modelos que dão a impressão de focinheiras aos seus pobres usuários.
Mesmo assim, Luquinha era incapaz de ver os defeitos de sua amada. Lambuzos de sopinha na cara, aquele narizinho escorrendo durante metade do ano, até mesmo aqueles verdadeiros terremotos que ainda ocasionalmente escapavam do seu bumbumzinho. Bumbumzinho esse que gerava dúvidas na sua cabeça. Seria possível que ela ainda estaria usando fraldinha? Ou a natureza teria sido mesmo pródiga naquele traseirinho tão arredondado? Não importava.
A parte mais esperada do seu dia era quando a sua babá anunciava que iriam brincar no play. Na maioria das tardes, Fafá já estava maravilhosamente empoleirada no seu carrossel, quando ele chegava de mãos dadas com Edineuza, uma mocinha meio zarolha que morava com eles e fazia dupla jornada como empregada doméstica pela manhã e à tarde brincava com ele e sua irmã mais velha. Irmã essa que foi a responsável pela sua aproximação daquela beldade.
No início eles aparentavam nem se gostar tanto assim. Tanto é que não foram poucas as vezes que ele voltou para o 802 chorando, com a cara inchada por causa de alguma mordida de sua atual paixão, ou mesmo com algumas dezenas de fios de cabelo a menos, arrancados num ímpeto de violência, principalmente quando ele se metia a besta de tentar andar no seu triciclo, ou quando fazia comentários pouco felizes a respeito de alguma peça do seu vestuário.
Mas com as mulheres costuma ser assim mesmo. No início não nos percebem. Passado algum tempo, se acham alguma coisa nossa de que gostaram, não largam mais do nosso pé. E foi justamente na transição desses opostos que Luquinha conheceu o período mais feliz de sua vidinha.
Mesmo nos dias mais fechados, suas tardes costumavam ser ensolaradas. Brincavam de esconde-esconde, pulavam corda, jogavam caçador. Até o antes proibido triciclo já era compartilhado. É bem verdade que não sem uma certa preocupação da titular. Normal: como conta-conjunta.
Para Luquinha essa vida não deveria mais terminar. Era bem alimentado, não precisava se preocupar com gastos e tinha o seu grande amor ali do lado. Não o dia inteiro. Mas como em toda relação, devemos mesmo ter um certo distanciamento durante algumas partes do dia, para não haver desgaste. Quando começava a escurecer, Edineuza juntava as tralhas, fingindo que não via quando a Fafá dava um tapinha ou um soquinho (com a sua conhecida mão pesada) no seu amado.
Como em toda história do gênero, não poderia faltar o elemento de dramaticidade. Numa bela tarde de sábado, não se sabe se influenciada por uma overdose de guaraná, Fafá percebeu o descuido e tascou-lhe um beijo no seu namorado. No rosto, mas daqueles bem melecados.
Luquinha ainda deu uma demorada risada, como que paralisado por aquele gesto tão inusitado. Não saberia explicar, no entanto, o que estava sentindo. Percebia que cada poro da sua bochecha estava sendo inundado por aquela saliva grudenta.
E o cheiro de cuspe, então? Como alguma coisa podia ser tão nojenta? Tantas mordidas da mesma boquinha, e nunca percebera... Talvez anestesiado pela força das dentadas. Correu em direção à Edineuza, que não tendo presenciado a cena, não conseguia entender o seu desespero.
Incapaz de achar o elevador naquele vale de lágrimas, subiu os oito andares pela escada mesmo, embora depois não lembrasse de tê-lo feito. A psicologia explica: amnésia pós-traumática.
Hoje, nas raras vezes em que sai de casa, Luquinha espera até ter certeza que Fátima Daniela (não a chama mais pelo apelido, pois não quer mais nenhuma intimidade) já desceu. Só então se aventura a entrar no elevador. Não sem antes se disfarçar de Batman.


 
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