Um Macaco Fonia

O Velho, O Novo e o Velho de Novo

Cinco senhoras esclerosadas depois, chega a minha vez no guichê. Estudo do caso, algumas poucas horas de sono. Decisões quanto à melhor rota a seguir, algumas poucas horas de sono. Preparativos para a viagem, algumas poucas horas de sono. Teria que cortar o que estava em excesso: as poucas horas de sono. Estava dormindo demais. Peço para a moça se apressar. Só tenho algumas poucas horas de sono.
-Como?
Poucos minutos para o embarque, digo.
A moça parece ter entendido o recado. Gentilmente, transformou a operação da venda da passagem numa cena em slow motion. Nunca peça para uma moça do guichê se apressar. No máximo tente mandá-la se apressar, se você confia muito no seu taco, o que não era o meu caso. Olho para o placar eletrônico da rodoviária. Na foto, agora, o rosto conhecido do bandido Carlos Miguel, o Cocada, ex-açougueiro, ex-apontador do bicho, ex-estivador, extrovertido, ex-palmeirense. Muito úteis estes placares eletrônicos. Exceto quando apresentam reprises dos sucessos da banda Calypso. Mais uma vez, memorizo seus traços fisionômicos: cabelos lisos repartidos no meio, olhar ligeiramente estrábico, barba por fazer, vinco nasogeniano acentuado, da meia-idade. Baixo rapidamente o olhar. Exceto no detalhe da barba, a figura corresponde exatamente à minha pessoa. (Um erro tê-la feito, no banheiro da rodoviária: passageiros me olhavam, com asco. Como se fios dentais, escarros e emanações fossem coisas agradáveis). Não sei se fruto da minha paranóia, sinto que a moça se inquieta ao olhar para a minha cara. Procura troco com dificuldade. Enrola-se. Não devia ter entregado a ela uma nota de cem por uma simples passagem para o interior. Começo a suar. Apalpo meus casacos em busca do lenço. A moça olha, agora rapidamente, para trás, a procura de um homem, qualquer homem. Enxerga seu companheiro de trabalho, parece dizer algo com os lábios para que eu não escute. É evidente seu mal-estar. O companheiro se aproxima. Se aquilo é o melhor exemplo de homem, seria mais sensato ter chamado uma enguia elétrica. Ele me olha, de cima a baixo. Parece não compreender o perigo. Instintivamente confere o placar eletrônico. Novo clipe do Calypso. Me safo desta vez, penso em comprar um CD pirata da banda, em agradecimento. A náusea do jejum mais o calor do meu grosso sobretudo me fazem desistir da idéia. Não há tempo.
Caminho a passos rápidos em direção ao portão de embarque. De dentro do ônibus, uma pequena criança dá adeus à sua mãe, no colo da tia - ou vice-versa. Rezo para que não seja minha vizinha de assento: a viagem inteira tendo que suportar baba de pirulito e olhares impertinentes. Pior: uma das senhoras esclerosadas que quase me fazem perder a viagem. Ela me olha sorridente desde a minha entrada pelo estreito corredor, carregando a pesada mala. (Outro erro: ter insistido em levar a valise comigo. Tempos difíceis estes, após o atentado de onze de agosto, em que um ônibus lotado de torcedores fanáticos do São Caetano atirou um ônibus em cima de um carrinho estacionado em frente a uma escola. Nada de grave aconteceu, exceto pelas pipocas queimadas. Os dois ocupantes do ônibus também escaparam ilesos). Fecho ainda mais a carranca, frustrando a expectativa da minha companheira de viagem. Ameaça conversar, mas pára ao olhar para minhas grossas sobrancelhas confluentes numa expressão de poucos amigos. Pensa em trocar de lugar, é tarde. Terá que ficar mais de três horas de bico calado, não sei se irá suportar. Melhor seria tê-la pedido para não respirar. Recosto no meu assento e percebo, incomodado, o enorme sapato do vizinho de trás, pousado sobre o apoio do braço. Olho feio também para ele. De nada adianta. Sente-se desafiado e me manda um joelhaço nos lombos, fazendo ver quem é que manda. A velha geme, temendo confusão.
Ônibus em movimento, a comissária de bordo vem dar as instruções. Ao sinal de despressurização da cabine, máscaras de oxigênio... O que é isso? Estamos num ônibus! Minhas escassas horas de sono cobram seu pesado tributo. Tento dormir, sob novos joelhaços. Torço para que ele desista, se não quiser desistir da vida, o palhaço. Durmo um sono entrecortado por barulhos de freio, guinadas e um ou outro passageiro de bexiga pequena indo e vindo do alívio no banheiro.
Acordo com o alto som do ronco. Confiro em volta: meu próprio, com certeza. Limpo a baba. E pensar que queria evitar sentar ao lado da criança (minha baba, no entanto não é doce, não gruda em assentos). Tateio minha bagagem com os pés. Checo no relógio, olhares da velha colados em mim. Pelos meus cálculos, devo estar próximo. Sentindo que a lucidez novamente me escapa, agarro meus pertences e levanto, num ímpeto. Encaro o sapatudo. Menos sorte da próxima vez, otário, parece me dizer com olhar desafiador. Num gesto de humanidade, me despeço da senhora. Lembrou minha mãe, agora, na saída. Vê lá, meu filho, o que é que você vai fazer. O motorista, genitais presos atrás do volante, vira-se ao perceber alguém aproximando. Em silêncio, espera que eu lhe fale. Digo apenas com voz firme: pára.
Na poeira do veículo, olho para os lados. Sinto falta do chapéu, estilo Eastwood, para compor a figura do solitário destemido. A estas horas, o sapatudo deve ter mijado no assento. Ou pelo menos a criança no colo da tia. Procuro pela torre da igreja. Não mais do que uns dois quilômetros. Moleza, não fosse o peso da mala. Penso na recompensa, me animo. Tento retirar o sobretudo no caminho, mas... Onde colocarei os outros objetos? Mantenho-me vestido, apesar do calor. Clint teria resistido, embora naquela época fosse mais jovem. Ao chegar ao centro da pequena cidade, percebo o quanto mudou. Nada das Pernambucanas. A Câmara de Vereadores foi pintada de verde musgo. Não, musgo mesmo. Avisto o hotel de dois andares, prostitutas na varanda. As mesmas prostitutas, cinco anos mais velhas. Tento fazer o cálculo: três fregueses por dia, seis dias na semana. Deixa pra lá, muito difícil. Além do mais, os fregueses são os mesmos, não vale o esforço.
(continua...)


 
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