Um Macaco Fonia

Perito À Vista

- Pensando na morte da bezerra?
Ficava assim. Pensando não só na morte. Mas na vida toda da pobrezinha. Na brevidade daquela existência. Nas possíveis causas do óbito. Teria sido prematuridade? Deviam ter desconfiado de cara, com aquela espécie de espirro desde o nascimento. Com um soluço emendado no final. Parecia arma com recuo, tadinha. Cada tiro rasgava nossa alma. Pelo menos se tivesse sido atendida a tempo... Mas por um veterinário de verdade. Não por aquele boliviano que meu pai mandou chamar. Ou peruano, sei lá. “El loco” Rodriguez. Com um nome desses teria sido melhor encomendar logo a extrema-unção.
Vinha de Kombi, trazendo todo o material necessário para o atendimento: serrote, mandril, torniquete... E um monte de outras ferramentas a mais. Não tinha certeza se todos aqueles instrumentos eram próprios do ofício. Quando se exigiu que mostrasse o diploma, disse ter extraviado na última inundação da Colômbia. Ou Venezuela, não lembro. Ao notar a aproximação de “El loco”, a mãe da paciente apenas emitiu um breve mugido, consternada. Parecia prever o pior.
Assim se passava na localidade de Lourenço Cercado, a milhares de quilômetros de qualquer cidade de médio porte: tínhamos que aceitar a palavra de qualquer sumidade que aparecesse. E enquanto ia preparando o seu parecer num minucioso exame de ponta de botas, o especialista contava detalhes do terremoto que se abateu no seu país de origem. Não demorou a dar o veredicto: infecção. Como se dele se esperasse outro tipo de veredicto. Vinha com seus vastos conhecimentos do Paraguai (ou Equador) a peso de ouro (grãos de milho, nesse caso) para proferir brilhante diagnóstico. E não menos luzidio tratamento:
Prescreveu uma espécie de salmoura, ou qualquer coisa do gênero, para ser introduzida no traseiro da bichinha. Que naquele estado não haveria de reclamar da vida, já que de partida pra outra.
Duas vezes. Não precisou mais do que duas vezes daquele milagroso preparado para que, em meio a um barulho estrepitoso, a criatura começasse a estrebuchar. Nessas alturas, decerto, Dr. Rodriguez e todo seu cabedal cruzavam a fronteira do Panamá. Ou do Uruguai.
Não sei se pela ligação afetiva com a bichana, não lembro de funeral tão comovente. Como de resto não lembro de mais nenhum funeral envolvendo qualquer membro da família bovina naquele povoado tão pobremente povoado.
E de quem ouvisse lamentos ou críticas, meu pai sempre tinha a resposta pronta:
“O médico era bom. O provável é que a gente não tenha compreendido direito como era para fazer o tratamento. Também, ninguém aqui sabia alemão”.
Ou seria polonês?


 
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