Um Macaco Fonia

Nem Zen

Joelmo era um sujeito desembutido de neuroses (desembutido deve ser um neologismo, desculpem, não tenho dicionário à mão para confirmar. Gosto de palavras esdrúxulas. Se for um neologismo de minha autoria então, aí mesmo é que me desculpem, vou carregar no colo e colocar para ninar). Mas como eu dizia, era um sujeito desem... (destituído, vá lá!) de neuroses. Nada o abalava. Era como se seu organismo tivesse sido construído para viver em outros tempos.
Neurose de trânsito, por exemplo. Tão comum nos dias de hoje. Mas não com o Joelmo. Dirigia seu possante com a maior tranqüilidade. Não que não cometesse erros. Na verdade, cometia muitos. Alguns até glamourosos. Clamorosos? Não, glamourosos mesmo, pois suas barbeiragens continham até um certo charme. Com sua velha Rural ziguezagueando pelo conturbado trânsito da cidade grande, parecia um Ciclope caolho. Além de deficiente auditivo. Ou talvez imaginasse que os apropriados impropérios que ouvia não fossem dirigidos à sua mal dirigida pessoa.
Neurose de ascensão social. Também não tinha. Não estava, digamos assim, confortavelmente instalado naquela meia-água de meia-tigela do seu irmão mais velho, mas, aos poucos, em suaves prestações naquelas lojas em que se compra de tudo do piso ao teto, ia construindo seu confortável ninho.
Neurose de imagem corporal. Também não. Era razoavelmente bem constituído. Nem gordo nem magro. Não chegava a ser atraente, tampouco desejava sê-lo. Era simplesmente “normal”. Não freqüentava academia. Fazia apenas leves caminhadas diárias para se manter fisicamente ativo. Ao redor da quadra, o que lhe permitia parar quase no exato momento em que se sentisse cansado. Comia não pouco, mas segundo ele, o suficiente. Era do tipo que recusa o segundo pão de queijo. Aquele cara que abre o cardápio na pizzaria e diz: “Para mim de muzzarela está bom”. E deixa a borda no prato! Também não fumava. Não por zelo com a saúde. Apenas por nunca ter sido apresentado ao vício. A fumaça alheia, porém, não o incomodava. Nem a fumaça nem o pigarro, nem cinzeiro decorado com guimba de cigarro.
De fato não havia espaço para neuroses na vida do Joelmo. Nada o tirava realmente do sério. Nada o deixava excessivamente ansioso ou mesmo empolgado. Para pessoas como eu, que se descabela com uma privada entupida, que pede para fazer biópsia de verruga, que discute com caixa eletrônico, que compra refrigerante de todas as cores para garantir uma dieta balanceada, que só compra carro amarelo, que põe despertador no meio da noite para conferir se está vivo, que guarda fotografia antiga em geladeira, que só come kiwi após retirar todas as sementes, que malha musculatura da pálpebra, que tira meleca do nariz até sair sangue do dedo, que se incomoda com barulho de peixe no aquário, que não reutiliza meia, que toma banho quando pega em dinheiro, que só assiste tevê segurando o controle remoto, que não toca em corrimão nem se estiver caindo, que pensa na lista do supermercado quando transa, que tem tesão louco dentro de supermercados, que chora pela derrota do time adversário, que se benze quando entra em elevador, que não encara olho de sapo, que sente tonturas quando ingere pouco molibdênio, que não escuta música de artista morto, que não come qualquer comida que tenha encostado no feijão, que não sai da sala de cinema até que terminem todos os créditos, que só usa palito de dentes importado, que já foi multado por insistir em dirigir carro de capacete, que não desculpa pisada no pé e ainda jura de morte, que compra vários pares de sapato mas só usa o mesmo, que desmaia quando vê sangue de barata, que usa protetor solar nas partes íntimas, enfim, para pessoas com algumas pequenas neuroses, a sua tranqüilidade era algo admirável.
No entanto, para tudo há um preço nessa vida. O que o tempo não criou em excesso, provavelmente fez-lhe falta. O que não havia sido dado em forma de neurose, foi se avolumando na forma de um gigantesco tédio. E foi assim que aconteceu.
Com o passar dos anos, o tédio corroeu suas entranhas, invadiu sua corrente circulatória, entupiu-lhe as artérias, assomou-lhe às veias, arrolhou pulmões, e por fim, subitamente, pespegou-lhe um tranco que correu do tronco à substância branca do cérebro, circuitando de forma definitiva seus calmíssimos impulsos nervosos. Consta no atestado: morreu de tédio.


 
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