Um Macaco Fonia

Meia-Culpa

Quero dizer que não tive participação em nada disso. Quando cheguei, já estava tudo irremediavelmente encaminhado neste planeta.
O aquecimento global, por exemplo. Tudo bem, eu uso meu carrinho emissor de poluente, sim. Mas daí a aquecer o planeta inteiro, já vai uma grande diferença. Até proponho uma justa expiação. Ao invés de aquecimento global, façamos uma equânime distribuição. Cada qual com seu ardor devido. Calculo que pelos meus mais de vinte anos de poluição deva ter direito a uns cerca de, deixe-me ver, 0,005 graus centígrados a mais distribuídos no meu ano inteiro, se eu não errei nas contas. Isso se vão levar em consideração o meu fusquinha meia oito, que eu só tirava da garagem para tomar um ar, depois de lavá-lo nos finais de semana. Como entusiasmado subscritor do Código do Consumidor, vou exigir que minha parte seja fornecida nos meses de inverno. Eu nem vou achar muito ruim. Meu inverno anda meio friozinho demais pro meu gosto, mesmo.
Poluição sonora. Outro flagelo do qual sou totalmente inocente. E como cidadão consciente, tenho feito os meus esforços pelo bem da comunidade. Mesmo com a bexiga do tamanho de uma noz, foz de um aparelho urinário supostamente diureticômano, tenho acumulado meus líquidos dejetos nas incontáveis idas noturnas ao banheiro sem dar descarga, para evitar que meus vizinhos ouçam o desagradável gorgolejo. Sem falar na minuciosa pontaria na porcelana, o que reduz cerca de vinte e cinco decibéis. Por mijo. Pum nessas horas então, nem pensar. Somente quando já novamente amparado pelo colchão. Com o cuidado adicional de conferir se a patroa mudou de posição após a, digamos assim, emissão, o que recomenda mais cautela esfincteriana na próxima empreitada.
Já sei o que vão dizer. Que no quesito poluição visual não tenho álibi. Enganam-se. Preciso explicar que aquele conjunto de calça cáqui com blazer xadrez me foi dado todo ele de presente no meu aniversário. Inclusive com as meias de losangos dourados entremeados com cifrões vermelhos. Não pude deixar de usá-los. Pelo menos durante os sete anos seguintes, para não deixar mamãe muito triste. O pingüim da geladeira também, já tinha ido para a despensa. Mas aí me disseram que era fashion novamente e nos reconciliamos, apesar do pé quebrado e da cara de magoado. Agora só espero que não me citem o retrato dos meus avós na salinha da televisão. Ele tem valor sentimental, pôxa. Os dois ali, recém-casados, entre as nuvens... Tá bom, concordo que a expressão do meu avô ficou um pouco forçada. Vai ver é porque minha avó estava mais para sultão do que para odalisca. Mas naquele tempo era assim. Teve coragem de encarar para fazer meu pai, teve que ter coragem para casar.
Entretanto, não sou ingrato. Sei também reconhecer a contrapartida. Não colaboro para estragar, mas também não mexo uma palhinha para ajudar. Não tenho direito adquirido para usufruir tudo que tenho usufruído até agora. Fosse pelo meu esforço, teria certamente deixado a humanidade onde estava como eu a peguei.
Ao menor impulso evolutivo teria provavelmente dito coisas do tipo: “Muito interessante essa idéia do telefone celular, mas vai ser muito complicado. Afinal de contas, já estamos conseguindo nos comunicar perfeitamente bem com telefones dentro de casa. A única coisa chata é ter que girar a manivela”. E na era pré-aviação: “Podíamos tentar construir algum objeto para podermos voar como os pássaros. Mas só de pensar nisso tudo já tá me dando um soninho...”.
Tivesse eu vivido no período Cretáceo (ou Mesozóico, não sei bem) e meu irmão mais novo falasse em inventar a roda, eu certamente teria lhe dito para se preocupar com coisas mais úteis como acender o fogo para o jantar ou raspar o teto sujo da caverna. Não sem antes lhe tascar um baita tapa na sua orelha peluda.


 
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