Um Macaco Fonia

Dissabores

Nojo, vergonha, um certo parentesco com dúvida existencial. Leocádio não sabia os reais motivos que o faziam não mais aparecer naquele restaurante outrora tão “aprazível” (como ele mesmo gostava de defini-lo). O fato é que não mais poria os pés lá. Pronto, estava decidido!
Todos os dias, quando estava no seu trabalho como bibliotecário da Faculdade de Ciências e Letras de Ribeirão Dourado, Leocádio reservava um tempinho para checar o cardápio impresso do Restaurante Primo Mangiare, já se deliciando com as opções do dia. Apesar de ser um típico restaurante “por quilo” , ele preferia não se referir desta forma ao seu delicioso Mangiare. Ficava sempre a esquisita impressão de que se tratava de restaurante argentino, onde só se poderia comer carne de porco (“porquilo”).
Saladas das mais variadas (apesar do banho de vinagre transformar aquele arco-íris num sabor quase monocromático), dois tipos de arroz (“com ou sem sujeirinhas”), carnes (de frango, principalmente, que o fazia pensar como um mesmo animal podia se transformar tanto). E as massas. Ah, as massas!...Estas eram as verdadeiras preciosidades . Tão saborosas que em certas ocasiões teve que resistir ao impulso de ir abraçar o “ chef de cuzim” (fala um pouco de francês, sim , tá pensando o quê ?).
Porém uma coisa apenas o irritava profundamente nesta orgia gástrica do meio-dia. Quase todos os dias, quando estava pronto para locupletar o seu rico estômago, aparecia pontualmente um senhor dos seus oitenta e tantos anos, que talvez devido à perda de muitos dos seus outrora cinco sentidos, aproximava seu imenso e cabeludo nariz das fumegantes travessas. E o que era pior: parecia às vezes perder-se em divagações . Que estaria ele pensando: se haveria outro paraíso como este em outra vida? Seria hora de almoçar ou de jantar? Afinal, as tropas aliadas já desembarcaram na Normandia?
Por anos e anos Leocádio havia suportado tal provação. Até porque era muito tímido para mostrar qualquer sinal de impaciência com aquele senhor, que, além do mais, merecia respeito pelos cabelos brancos que um dia habitaram aquela deslustrada cabeça.
Qual não foi então sua alegria quando, nos últimos dias, começou a notar a ausência do pobre velho (por que este irritante adjetivo acompanha os senhores que dobraram o cabo da boa esperança , outro irritante complemento nominal ?).
Encheu-se de coragem, talvez alavancada pela feliz perspectiva de não ter mais tão ignóbil convívio, e perguntou ao dono do restaurante, um sujeito que conhecia desde a infância mas com quem nunca havia trocado mais do que duas ou três palavras devido à sua “ tremenda carranca”, fato conhecido de todos os que ali freqüentavam:
-E aí, Jesuíno, aquele velhinho que ficava cheirando a comida morreu, é?
-O senhor - respondeu Jesuíno com um tratamento de quem não quer intimidade- deve estar perguntando sobre meu avô... Não morreu, não.
Estava viajando, soube por outra pessoa (Jesuíno pára de falar automaticamente ao proferir a décima primeira palavra). Voltaria da praia nos próximos dias.
Precisava?


 
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